

ainda no coração das trevas
horror e loucura na colônia (2023)
Foi em 1899 que Charles Marlow, o narrador principal do romance Coração das Trevas, de Joseph Conrad, relatou a nós, seus leitores, a imagem ao mesmo tempo apavorante e enlouquecedora do Congo colonizado e seus habitantes: “Seis negros avançavam em fila, se arrastando trilha acima. Caminhavam eretos e lentos, equilibrando pequenas cestas cheias de terra sobre a cabeça, e o tilintar marcava o tempo de suas passadas. Vestiam trapos pretos em volta dos quadris, e as extremidades posteriores curtas balançavam para frente e para trás como rabos. Eu via cada costela, as articulações dos membros eram como nós numa corda, cada um tinha uma coleira de ferro, e todos estavam unidos por uma corrente cujos elos oscilavam entre eles, tilintando ritmicamente”. O sucesso do livro de Conrad talvez se deva menos à uma alardeada capacidade de fazer a denúncia da exploração colonial, rapidamente reconhecida pelas boas mentes pensantes da branquitude europeia, e mais pela conformidade de sua narrativa às expectativas dessa mesma branquitude de ser o centro da História. Devemos lembrar que o sofrimento, o horror e a loucura testemunhados por Marlow servem apenas de cenário, ainda que terrível, para a transformação de um outro personagem branco, o capitão Kurtz? Todo o mundo africano que Conrad insiste em qualificar como “estranho, atraente, sugestivo e selvagem” é medido pelo impacto que causa naquele que o explora, de modo que o colonizador, através da experiência do horror e da loucura, purga sua culpa. É o próprio Marlow que o confessa, e aqui tanto faz se estamos diante de uma ironia ou não: “A conquista da terra, que significa sobretudo tirá-la daqueles que têm uma pele diferente ou o nariz ligeiramente mais achatado que o nosso, não é uma coisa muito bonita quando vista de muito perto. O que a redime é somente a ideia. Uma ideia por trás dela; sem nenhum pretexto sentimental, apenas uma ideia, e uma crença desprendida na ideia – alguma coisa que criamos para que diante dela nos curvemos e lhe ofereçamos um sacrifício...”.
O projeto “Ainda no coração das trevas: horror e loucura na colônia” será desenvolvido em 2023 a partir de uma investigação sobre os mecanismos de violência que instituíram as imagens do aterrorizante e do louco em contextos de submissão política. Será preciso discutir, de um lado, como o discurso canônico elaborou conceitualmente, do ponto de vista estético e ideológico, uma narrativa hegemônica que se passava por uma denúncia, mas que, de certo modo, promulgava a centralidade do sujeito branco europeu como paradigma. As categorias da estética da filosofia de Kant e as estratégias narrativas de Conrad fazem parte, assim, desse monumental aparelho de capturar a violência, mas apenas sob o custo de a perpetuarem por outras vias. Após um período estudando sobre algumas formas e métodos de resistência, o Contragrupo se deparou com outros elementos que embarcam o universo dos marginalizados, anormais e silenciados: o horror, a monstruosidade e a loucura. Todos esses aspectos surgem a partir da perspectiva de um Mesmo que tenta capturar e normatizar tudo o que não lhe é totalmente semelhante, precisando condenar e criar uma narrativa que corrobore com suas práticas de intervenção e repressão. Mas será igualmente necessário pensar que tipo de contradiscurso se mobilizou, ainda que sem o devido reconhecimento, no enfrentamento dessa leitura apaziguante da violência. O horror e a loucura apresentados na escrita de Lovecraft, Carolina Maria de Jesus, Antonin Artaud, Frantz Fanon, Assad Haider e outros apontam para um outro lugar, cuja especificidade será o objeto de pesquisa deste projeto. Seu território se localiza em posição diametralmente oposta ao elogio do projeto civilizatório iluminista, revelando o olhar do monstro sobre aquele que o monstrificou. Desse modo, dando continuidade à análise dos critérios e métodos de exclusão e segregação, serão abordados os temas do horror e da loucura com base nos discursos daqueles que ficaram à margem durante toda sua vida, sob a justificativa de uma ressocialização que jamais seria concretizada em ambientes institucionais de tortura aprovados por todos. Serão colocadas em evidência as vozes e olhares de miseráveis, escravizados, selvagens, anormais e outros monstros nomeados pelo homem branco cis hétero europeu, o único que ocupa plenamente a categoria de humanidade.
As reuniões do grupo acontecem às sextas, podendo ser acompanhadas na seção agenda de atividades e o material para discussão está disponível na seção biblioteca deste site.