resistências invisíveis: genealogia política do paradigma eurocêntrico da ação (2022)
A história dos vencidos pode ser lida pelos vencedores? São eles capazes de enxergar os códigos e as lutas que, em um sistema canônico, são articulados pelos proscritos, pelos silenciados e pelos anormais? Um projeto de emancipação antirracista, anti-misógino, anti-homofóbico, poderia se sustentar plenamente a partir da ideia de que é preciso resgatar a subjetividade, a autonomia e a capacidade de agir perdidas pelas ideologias totalitárias? Ou seria preciso, antes, mostrar que sujeito, liberdade e ação projetam uma sombra sobre todo um campo de práticas que nem mesmo são contempladas pelo programa de uma política ainda iluminista, com preconceitos que se alojam em um nível mais amplo das condições da experiência possível do mundo?
A investigação proposta no âmbito desse primeiro núcleo de trabalho está relacionada a um questionamento do significado de resistência política, expressão sempre compreendida no contexto das teorias da autonomia e da identidade que se constituíram desde o final do século XVIII. Partindo de objeções levantadas contra esse paradigma por autores como Claudia Rankine, Denise Ferreira dos Santos, Fred Moten, Judith Butler, Javier Saez, Sejo Carrascoza e Jack Halberstam, a pergunta que orientará as análises pode ser formulada do seguinto modo: o que significa pensar a resistência em um sistema de dominação que faz de seus objetos entidades não-agentes? Ou ainda: o que seria um sistema de resistência produzido em meio à violência, parasitando essa violência e criando dimensões que não são invisíveis apenas porque assim foram forçadas a permanecer, mas porque agem instrumentalizando essa invisibilidade.
Desdobram-se, a partir dessa pergunta, algumas hipóteses. Em primeiro lugar, a da necessidade de se pensar a relação entre os excluídos do cânone – mulheres, negros, pobres etc. – e os que nele encontrar lugar e autoridade para além da lógica da participação. Uma releitura do cânone filosófico, nesse sentido, não estaria dedicada a incluir esses não-agentes, a reintegrá-los historicamente, mas a mostrar que práticas e que discursos eles não deixaram de articular, mesmo invisibilizados, e como tais práticas e tais discursos não são apenas passivamente destituídos, mas penetram a forma dominante impondo-lhes desafios conceituais, através de uma lógica que se aproxima da paródia, da parasitação, da perversão e da complexidade das ambiguidades. É o caso, por exemplo, da inclusão tensa de escravizados em famílias brancas, que tem sido vista sob a ótica da violência exercida sobre os corpos negros, mas ignoram, em grande medida, que esses corpos produziram estratégias de resistência específicas. A segunda hipótese, ligada à anterior, é a de que há uma vinculação – interseccional – entre os modelos de ação invisibilizados pela lógica da subjetividade eurocentrada. Assim, por exemplo, as práticas dissidentes de produção de identidade sexual podem ajudar a iluminar aspectos das estratégias de enfrentamento contra o racismo, e vice-versa.
O projeto de pesquisa se dedicará, assim, a percorrer modelos de ação que foram ignorados ou considerados como impossíveis, utópicos ou mesmo desimportantes, pela lógica iluminista do cânone filosófico-literário moderno. Dois estudos de caso deverão ser empreendidos: o da escrita filosófica da filósofa Karoline von Günderrode, autora do período romântico alemão, e o da mística de Rosa Egipcíaca, escravizada alforriada do século XVIII, autora de um livro intitulado Sagrada teologia do amor divino das almas peregrinas que lhe valeu um processo da Inquisição, e, por fim, a morte nos porões do cárcere em Lisboa.
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